segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Miss Dollar

  1. Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação deMiss Dollar, seriao autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação.Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar. Se o leitor é rapaz e dado ao génio melancólico, imagina que Miss Dollar é uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser valorosa e ideal como uma criação de Shakespeare;deve ser o contraste do roastbeef britânico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartineno original; se souber o português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentaçãode semelhante criatura, adicionando-se-lhe alguns confeitos e biscoitos para acudirás urgências do estômago. A sua fala deve ser um murmúrio de harpa eólica; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro. A figura é poética, mas não é a da heroína do romance. Suponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra. Desta vez será uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, estava Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro a uma página de Longfellow, cousa naturalíssima quando o estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia do pôr-do-sol. Será uma boa mãe de família segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilização, isto é, fecunda e ignorante. Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso. Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa inglesa de cinquenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance verdadeiro,casando com o leitor aludido. Uma talMiss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu de linho em forma de cúia, seriam a última de mão deste magnífico tipo de ultramar. Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroína do romance não é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro constados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica. A descoberta seria excelente, se fosse exacta; infelizmente nem esta nem as outras são exactas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga. Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para 2
  2. este livro. O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa: "Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar à rua de Mata-cavalos no...,receberá duzentos mil-réis de recompensa. Miss Dollar tem uma coleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se lêem as seguintes palavras: De tout moncoeur." Todas as pessoas que sentiam necessidade urgente de duzentos mil-réis, etiveram a felicidade de ler aquele anúncio, andaram nesse dia com extremo cuidadonas ruas do Rio de Janeiro, a ver se davam com a fugitiva Miss Dollar. Galgo queaparecesse ao longe era perseguido com tenacidade até verificar-se que não era oanimal procurado. Mas toda esta caçada dos duzentos mil-réis era completamenteinútil, visto que, no dia em que apareceu o anúncio, já Miss Dollar estava aboletadana casa de um sujeito morador nos Cajueiros que fazia coleção de cães.CAPÍTULO II Quais as razões que induziram o Dr. Mendonça a fazer coleção de cães, écousa que ninguém podia dizer; uns queriam que fosse simplesmente paixão poresse símbolo da fidelidade ou do servilismo; outros pensavam antes que, cheio deprofundo desgosto pelos homens, Mendonça achou que era de boa guerra adorar oscães. Fossem quais fossem as razões, o certo é que ninguém possuía mais bonitae variada coleção do que ele. Tinha-os de todas as raças, tamanhos e cores.Cuidava deles como se fossem seus filhos; se algum lhe morria ficava melancólico.Quase se pode dizer que, no espírito de Mendonça, o cão pesava tanto como oamor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será umermo. O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homemexcêntrico. Não era. Mendonça era um homem como os outros; gostava de cãescomo outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-oscom o mesmíssimo esmero. De flores gostava também; mas gostava delas nasplantas em que nasciam: cortar um jasmim ou prender um canário parecia-lheidêntico atentado. Era o Dr. Mendonça homem de seus trinta e quatro anos, bem apessoado,maneiras francas e distintas. Tinha-se formado em medicina e tratou algum tempode doentes; a clínica estava já adiantada quando sobreveio uma epidemia na capital;o Dr. Mendonça inventou um elixir contra a doença; e tão excelente era o elixir, queo autor ganhou um bom par de contos de réis. Agora exercia a medicina comoamador. Tinha quanto bastava para si e a família. A família compunha-se dosanimais citados acima. Na memorável noite em que se desencaminhou Miss Dollar, voltavaMendonça para casa quando teve a ventura de encontrar a fugitiva no Rocio. Acadelinha entrou a acompanhá-lo, e ele, notando que era animal sem dono visível,levou-a consigo para os Cajueiros. Apenas entrou em casa examinou cuidadosamente a cadelinha, Miss Dollar era realmente um mimo; tinha as formas delgadas e graciosas da sua fidalga raça;os olhos castanhos e aveludados pareciam exprimir a mais completa felicidade destemundo, tão alegres e serenos eram. Mendonça contemplou-a e examinou 3
  3. minunciosamente. Leu o dístico do cadeado que fechava a coleira, e convenceu-sefinalmente de que a cadelinha era animal de grande estimação da parte de quemquer que fosse dono dela. — Se não aparecer o dono, fica comigo, disse ele entregando Miss Dollar aomoleque encarregado dos cães. Tratou o moleque de dar comida a Miss Dollar, enquanto Mendonça planeavaum bom futuro à nova hóspede, cuja família devia perpetuar-se na casa. O plano de Mendonça durou o que duram os sonhos: o espaço de uma noite.No dia seguinte, lendo os jornais, viu o anúncio transcrito acima, prometendoduzentos mil-réis a quem entregasse a cadelinha fugitiva. A sua paixão pelos cãesdeu-lhe a medida da dor que devia sofrer o dono ou dona de Miss Dollar, visto quechegava a oferecer duzentos mil-réis de gratificação a quem apresentasse a galga.Conseqüentemente resolveu restituí-la, com bastante mágoa do coração. Chegou ahesitar por alguns instantes; mas afinal venceram os sentimentos de probidade ecompaixão, que eram o apanágio daquela alma. E, como se lhe custasse despedir-se do animal, ainda recente na casa, dispôs-se a levá-lo ele mesmo, e para esse fimpreparou-se. Almoçou, e depois de averiguar bem se Miss Dollar havia feito amesma operação, saíram ambos de casa com direção a Mata-cavalos. Naquele tempo ainda o Barão do Amazonas não tinha salvo a independênciadas repúblicas platinas mediante a vitória de Riachuelo, nome com que depois aCâmara Municipal crismou a Rua de Mata-cavalos. Vigorava, portanto, o nometradicional da rua, que não queria dizer cousa nenhuma de jeito. A casa que tinha o número indicado no anúncio era de bonita aparência eindicava certa abastança nos haveres de quem lá morasse. Antes mesmo queMendonça batesse palmas no corredor, já Miss Dollar, reconhecendo os pátrioslares, começava a pular de contente e a soltar uns sons alegres e guturais que, sehouvesse entre os cães literatura, deviam ser um hino de ação de graças. Veio um moleque saber quem estava; Mendonça disse que vinha restituir agalga fugitiva. Expansão do rosto do moleque, que correu a anunciar a boa nova.Miss Dollar, aproveitando uma fresta, precipitou-se pelas escadas acima. Dispunha-se Mendonça a descer, pois estava cumprida a sua tarefa, quando o moleque voltoudizendo-lhe que subisse e entrasse para a sala. Na sala não havia ninguém. Algumas pessoas, que têm salas elegantementedispostas, costumam deixar tempo de serem estas admiradas pelas visitas, antes deas virem cumprimentar. É possível que esse fosse o costume dos donos daquelacasa, mas desta vez não se cuidou em semelhante cousa, porque mal o médicoentrou pela porta do corredor surgiu de outra interior uma velha com Miss Dollar nosbraços e a alegria no rosto. — Queira ter a bondade de sentar-se, disse ela designando uma cadeira àMendonça. — A minha demora é pequena, disse o médico sentando-se. Vim trazer-lhe acadelinha que está comigo desde ontem... — Não imagina que desassossego causou cá em casa a ausência de Miss Dollar... — Imagino, minha senhora; eu também sou apreciador de cães, e se mefaltasse um sentiria profundamente. A sua Miss Dollar... 4
  4.  — Perdão! interrompeu a velha; minha não; Miss Dollar não é minha, é deminha sobrinha. — Ah!... — Ela aí vem. Mendonça levantou-se justamente quando entrava na sala a sobrinha emquestão. Era uma moça que representava vinte e oito anos, no plenodesenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardiae imponente. O vestido de seda escura dava singular realce à cor imensamentebranca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade doporte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-sepor baixo da seda um belo tronco de mármore modelado por escultor divino. Oscabelos castanhos e naturalmente ondeados estavam penteados com essasimplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhegraciosamente a fronte como uma coroa doada pela natureza. A extrema brancurada pele não tinha o menor tom cor-de-rosa que lhe fizesse harmonia e contraste. Aboca era pequena, e tinha uma certa expressão imperiosa. Mas a grande distinçãodaquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duasesmeraldas nadando em leite. Mendonça nunca vira olhos verdes em toda a sua vida; disseram-lhe queexistiam olhos verdes, ele sabia de cor uns versos célebres de Gonçalves Dias; masaté então os olhos verdes eram para ele a mesma cousa que a fênix dos antigos.Um dia, conversando com uns amigos a propósito disto, afirmava que se alguma vezencontrasse um par de olhos verdes fugiria deles com terror. — Por quê? perguntou-lhe um dos circunstantes admirado. — A cor verde é a cor do mar, respondeu Mendonça; evito as tempestades deum; evitarei as tempestades dos outros. Eu deixo ao critério do leitor esta singularidade de Mendonça, que de mais amais é preciosa, no sentido de Molière.CAPÍTULO III Mendonça cumprimentou respeitosamente a recém-chegada, e esta, com umgesto, convidou-o a sentar-se outra vez. — Agradeço-lhe infinitamente o ter-me restituído este pobre animal, que memerece grande estima, disse Margarida sentando-se. — E eu dou graças a Deus por tê-lo achado; podia ter caído em mãos que onão restituíssem. Margarida fez um gesto a Miss Dollar, e a cadelinha, saltando do regaço davelha, foi ter com Margarida; levantou as patas dianteiras e pôs-lhas sobre osjoelhos; Margarida e Miss Dollar trocaram um longo olhar de afeto. Durante essetempo uma das mãos da moça brincava com uma das orelhas da galga, e davaassim lugar a que Mendonça admirasse os seus belíssimos dedos armados comunhas agudíssimas. 5
  5.  Mas, conquanto Mendonça tivesse sumo prazer em estar ali, reparou que eraesquisita e humilhante a sua demora. Pareceria estar esperando a gratificação. Paraescapar a essa interpretação desairosa, sacrificou o prazer da conversa e acontemplação da moça; levantou-se dizendo: — A minha missão está cumprida... — Mas... interrompeu a velha. Mendonça compreendeu a ameaça da interrupção da velha. — A alegria, disse ele, que restituí a esta casa é a maior recompensa que eupodia ambicionar. Agora peço-lhes licença... As duas senhoras compreenderam a intenção de Mendonça; a moça pagou-lhe a cortesia com um sorriso; e a velha, reunindo no pulso quantas forças ainda lherestavam pelo corpo todo, apertou com amizade a mão do rapaz. Mendonça saiu impressionado pela interessante Margarida. Notava-lheprincipalmente, além da beleza, que era de primeira água, certa severidade triste noolhar e nos modos. Se aquilo era caráter da moça, dava-se bem com a índole demédico; se era resultado de algum episódio da vida, era uma página do romanceque devia ser decifrada por olhos hábeis. A falar verdade, o único defeito queMendonça lhe achou foi a cor dos olhos, não porque a cor fosse feia, mas porqueele tinha prevenção contra os olhos verdes. A prevenção, cumpre dizê-lo, era maisliterária que outra cousa; Mendonça apegava-se à frase que uma vez proferira, e foiacima citada, e a frase é que lhe produziu a prevenção. Não mo acusem de chofre;Mendonça era homem inteligente, instruído e dotado de bom senso; tinha, alémdisso, grande tendência para as afeições românticas; mas apesar disso lá tinhacalcanhar o nosso Aquiles. Era homem como os outros, outros Aquiles andam por aíque são da cabeça aos pés um imenso calcanhar. O ponto vulnerável de Mendonçaera esse; o amor de uma frase era capaz de violentar-lhe afetos; sacrificava umasituação a um período arredondado. Referindo a um amigo o episódio da galga e a entrevista com Margarida,Mendonça disse que poderia vir a gostar dela se não tivesse olhos verdes. O amigoriu com certo ar de sarcasmo. — Mas, doutor, disse-lhe ele, não compreendo essa prevenção; eu ouço atédizer que os olhos verdes são de ordinário núncios de boa alma. Além de que, a cordos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como océu e pérfidos como o mar. A observação deste amigo anônimo tinha a vantagem de ser tão poéticacomo a de Mendonça. Por isso abalou profundamente o ânimo do médico. Não ficoueste como o asno de Buridan entre a selha d’água e a quarta de cevada; o asnohesitaria, Mendonça não hesitou. Acudiu-lhe de pronto a lição do casuísta Sánchez,e das duas opiniões tomou a que lhe pareceu provável. Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e estacontrovérsia sobre a qualidade provável deles. Provará com isso que tem poucaprática do mundo. Os almanaques pitorescos citam até à saciedade milexcentricidades e senões dos grandes varões que a humanidade admira, já porinstruídos nas letras, já por valentes nas armas; e nem por isso deixamos de admirar 6
  6. esses mesmos varões. Não queira o leitor abrir uma exceção só para encaixar nelao nosso doutor. Aceitemo-lo com os seus ridículos; quem os não tem? O ridículo éuma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazemtoda a navegação sem outra espécie de carregamento. Para compensar essas fraquezas, já disse que Mendonça tinha qualidadesnão vulgares. Adotando a opinião que lhe pareceu mais provável, que foi a doamigo, Mendonça disse consigo que nas mãos de Margarida estava talvez a chavedo seu futuro. Ideou nesse sentido um plano de felicidade; uma casa num ermo,olhando para o mar ao lado do ocidente, a fim de poder assistir ao espetáculo dopôr-do-sol. Margarida e ele, unidos pelo amor e pela Igreja, beberiam ali, gota agota, a taça inteira da celeste felicidade. O sonho de Mendonça continha outrasparticularidades que seria ocioso mencionar aqui. Mendonça pensou nisto algunsdias; chegou a passar algumas vezes por Mata-cavalos; mas tão infeliz que nuncaviu Margarida nem a tia; afinal desistiu da empresa e voltou aos cães. A coleção de cães era uma verdadeira galeria de homens ilustres. O maisestimado deles chamava-se Diógenes; havia um galgo que acudia ao nome deCésar; um cão d’água que se chamava Nelson; Cornélia chamava-se uma cadelinharateira, e Calígula um enorme cão de fila, vera-efígie do grande monstro que asociedade romana produziu. Quando se achava entre toda essa gente, ilustre pordiferentes títulos, dizia Mendonça que entrava na história; era assim que se esqueciado resto do mundo.CAPÍTULO IV Achava-se Mendonça uma vez à porta do Carceller, onde acabava de tomarsorvete em companhia de um indivíduo, amigo dele, quando viu passar um carro, edentro do carro duas senhoras que lhe pareceram as senhoras de Mata-cavalos.Mendonça fez um movimento de espanto que não escapou ao amigo. — Que foi? perguntou-lhe este. — Nada; pareceu-me conhecer aquelas senhoras. Viste-as, Andrade? — Não. O carro entrara na Rua do Ouvidor; os dous subiram pela mesma rua. Logoacima da Rua da Quitanda, parara o carro à porta de uma loja, e as senhorasapearam-se e entraram. Mendonça não as viu sair; mas viu o carro e suspeitou quefosse o mesmo. Apressou o passo sem dizer nada a Andrade, que fez o mesmo,movido por essa natural curiosidade que sente um homem quando percebe algumsegredo oculto. Poucos instantes depois estavam à porta da loja; Mendonça verificou queeram as duas senhoras de Mata-cavalos. Entrou afouto, com ar de quem ia compraralguma cousa, e aproximou-se das senhoras. A primeira que o conheceu foi a tia.Mendonça cumprimentou-as respeitosamente. Elas receberam o cumprimento comafabilidade. Ao pé de Margarida estava Miss Dollar, que, por esse admirável faro quea natureza concedeu aos cães e aos cortesãos da fortuna, deu dous saltos dealegria apenas viu Mendonça, chegando a tocar-lhe o estômago com as patasdianteiras. 7
  7.  — Parece que Miss Dollar ficou com boas recordações suas, disse D. Antônia(assim se chamava a tia de Margarida). — Creio que sim, respondeu Mendonça brincando com a galga e olhandopara Margarida. Justamente nesse momento entrou Andrade. — Só agora as reconheci, disse ele dirigindo-se às senhoras. Andrade apertou a mão das duas senhoras, ou antes apertou a mão deAntônia e os dedos de Margarida. Mendonça não contava com este incidente, e alegrou-se com ele por ter àmão o meio de tornar íntimas as relações superficiais que tinha com a família. — Seria bom, disse ele a Andrade, que me apresentasses a estas senhoras. — Pois não as conheces? perguntou Andrade estupefato. — Conhece-nos sem nos conhecer, respondeu sorrindo a velha tia; por oraquem o apresentou foi Miss Dollar. Antônia referiu a Andrade a perda e o achado da cadelinha. — Pois, nesse caso, respondeu Andrade, apresento-o já. Feita a apresentação oficial, o caixeiro trouxe a Margarida os objetos que elahavia comprado, e as duas senhoras despediram-se dos rapazes pedindo-lhes queas fossem ver. Não citei nenhuma palavra de Margarida no diálogo acima transcrito, porque,a falar verdade, a moça só proferiu duas palavras a cada um dos rapazes. — Passe bem, disse-lhes ela dando as pontas dos dedos e saindo para entrarno carro. Ficando sós, saíram também os dous rapazes e seguiram pela Rua doOuvidor acima, ambos calados. Mendonça pensava em Margarida; Andradepensava nos meios de entrar na confidência de Mendonça. A vaidade tem mil formasde manifestar-se como o fabuloso Proteu. A vaidade de Andrade era ser confidentedos outros; parecia-lhe assim obter da confiança aquilo que só alcançava daindiscrição. Não lhe foi difícil apanhar o segredo de Mendonça; antes de chegar àesquina da Rua dos Ourives já Andrade sabia de tudo. — Compreendes agora, disse Mendonça, que eu preciso ir à casa dela; tenhonecessidade de vê-la; quero ver se consigo... Mendonça estacou. — Acaba! disse Andrade; se consegues ser amado. Por que não? Mas desdejá te digo que não será fácil. — Por quê? — Margarida tem rejeitado cinco casamentos. 8
  8.  — Naturalmente não amava os pretendentes, disse Mendonça com o ar deum geômetra que acha uma solução. — Amava apaixonadamente o primeiro, respondeu Andrade, e não eraindiferente ao último. — Houve naturalmente intriga. — Também não. Admiras-te? É o que me acontece. É uma rapariga esquisita.Se te achas com força de ser o Colombo daquele mundo, lança-te ao mar com aarmada; mas toma cuidado com a revolta das paixões, que são os ferozes marujosdestas navegações de descoberta. Entusiasmado com esta alusão, histórica debaixo da forma de alegoria,Andrade olhou para Mendonça, que, desta vez entregue ao pensamento da moça,não atendeu à frase do amigo. Andrade contentou-se com o seu próprio sufrágio, esorriu com o mesmo ar de satisfação que deve ter um poeta quando escreve oúltimo verso de um poema.CAPÍTULO V Dias depois, Andrade e Mendonça foram à casa de Margarida, e lá passarammeia hora em conversa cerimoniosa. As visitas repetiram-se; eram porém maisfreqüentes da parte de Mendonça que de Andrade. D. Antônia mostrou-se maisfamiliar que Margarida; só depois de algum tempo Margarida desceu do Olimpo dosilêncio em que habitualmente se encerrara. Era difícil deixar de o fazer. Mendonça, conquanto não fosse dado àconvivência das salas, era um cavalheiro próprio para entreter duas senhoras quepareciam mortalmente aborrecidas. O médico sabia piano e tocava agradavelmente;a sua conversa era animada; sabia esses mil nadas que entretêm geralmente assenhoras quando elas não gostam ou não podem entrar no terreno elevado da arte,da história e da filosofia. Não foi difícil ao rapaz estabelecer intimidade com a família. Posteriormente às primeiras visitas, soube Mendonça, por via de Andrade,que Margarida era viúva. Mendonça não reprimiu o gesto de espanto. — Mas tu falaste de um modo que parecias tratar de uma solteira, disse eleao amigo. — É verdade que não me expliquei bem; os casamentos recusados foramtodos propostos depois da viuvez. — Há que tempo está viúva? — Há três anos. — Tudo se explica, disse Mendonça depois de algum silêncio; quer ficar fiel àsepultura; é uma Artemisa do século. Andrade era céptico a respeito de Artemisas; sorriu à observação do amigo,e, como este insistisse, replicou: — Mas se eu já te disse que ela amava apaixonadamente o primeiropretendente e não era indiferente ao último. — Então, não compreendo. — Nem eu. 9
  9.  Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viúva;Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremodesdém, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas, a viúva, aomesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com amaior meiguice deste mundo sempre que ele a olhava como toda a gente. Amor repelido é amor multiplicado. Cada repulsa de Margarida aumentava apaixão de Mendonça. Nem já lhe mereciam atenção o feroz Calígula, nem oelegante Júlio César. Os dous escravos de Mendonça começaram a notar aprofunda diferença que havia entre os hábitos de hoje e os de outro tempo.Supuseram logo que alguma cousa o preocupava. Convenceram-se disso quandoMendonça, entrando uma vez em casa, deu com a ponta do botim no focinho deCornélia, na ocasião em que esta interessante cadelinha, mãe de dous Gracosrateiros, festejava a chegada do doutor. Andrade não foi insensível aos sofrimentos do amigo e procurou consolá-lo.Toda a consolação nestes casos é tão desejada quanto inútil; Mendonça ouvia aspalavras de Andrade e confiava-lhe todas as suas penas. Andrade lembrou a Mendonça um excelente meio de fazer cessar a paixão: era ausentar-se dacasa. A isto respondeu Mendonça citando La Rochefoucauld: "A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, como ovento apaga as velas e atiça as fogueiras." A citação teve o mérito de tapar a boca de Andrade, que acreditava tanto naconstância como nas Artemisas, mas que não queria contrariar a autoridade domoralista, nem a resolução de Mendonça.CAPÍTULO VI Correram assim três meses. A corte de Mendonça não adiantava um passo;mas a viúva nunca deixou de ser amável com ele. Era isto o que principalmenteretinha o médico aos pés da insensível viúva; não o abandonava a esperança devencê-la. Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse tão assíduona casa de uma senhora exposta às calúnias do mundo. Pensou nisso o médico econsolou a consciência com a presença de um indivíduo, até aqui não nomeado pormotivo de sua nulidade, e que era nada menos que o filho da Sra. D. Antônia e amenina dos seus olhos. Chamava-se Jorge esse rapaz, que gastava duzentos mil-réis por mês, sem os ganhar, graças à longanimidade da mãe. Freqüentava ascasas dos cabeleireiros, onde gastava mais tempo que uma romana da decadênciaàs mãos das suas servas latinas. Não perdia representação de importância noAlcazar; montava bons cavalos, e enriquecia com despesas extraordinárias asalgibeiras de algumas damas célebres e de vários parasitas obscuros. Calçava luvasletra da e botas no 36, duas qualidades que lançava à cara de todos os seusamigos que não desciam do no 40 e da letra H. A presença deste gentil pimpolho,achava Mendonça que salvava a situação. Mendonça queria dar esta satisfação aomundo, isto é, à opinião dos ociosos da cidade. Mas bastariaisso para tapar a boca aos ociosos? Margarida parecia indiferente às interpretações do mundo como àassiduidade do rapaz. Seria ela tão indiferente a tudo mais neste mundo? Não;amava a mãe, tinha um capricho por Miss Dollar, gostava da boa música, e liaromances. Vestia-se bem, sem ser rigorista em matéria de moda; não valsava; 10
  10. quando muito dançava alguma quadrilha nos saraus a que era convidada. Nãofalava muito, mas exprimia-se bem. Tinha o gesto gracioso e animado, mas sempretensão nem faceirice. Quando Mendonça aparecia lá, Margarida recebia-o com visívelcontentamento. O médico iludia-se sempre, apesar de já acostumado a essasmanifestações. Com efeito, Margarida gostava imenso da presença do rapaz, masnão parecia dar-lhe uma importância que lisonjeasse o coração dele. Gostava de over como se gosta de ver um dia bonito, sem morrer de amores pelo sol. Não era possível sofrer por muito tempo a posição em que se achava omédico. Uma noite, por um esforço de que antes disso se não julgaria capaz,Mendonça dirigiu a Margarida esta pergunta indiscreta: — Foi feliz com seu marido? Margarida franziu a testa com espanto e cravou os olhos nos do médico, quepareciam continuar mudamente a pergunta. — Fui, disse ela no fim de alguns instantes. Mendonça não disse palavra; não contava com aquela resposta. Confiavademais na intimidade que reinava entre ambos; e queria descobrir por algum modo acausa da insensibilidade da viúva. Falhou o cálculo; Margarida tornou-se sériadurante algum tempo; a chegada de D. Antônia salvou uma situação esquerda paraMendonça. Pouco depois Margarida voltava às boas, e a conversa tornou-seanimada e íntima como sempre. A chegada de Jorge levou a animação da conversaa proporções maiores; D. Antônia, com olhos e ouvidos de mãe, achava que o filhoera o rapaz mais engraçado deste mundo; mas a verdade é que não havia em todaa cristandade espírito mais frívolo. A mãe ria-se de tudo quanto o filho dizia; o filhoenchia, só ele, a conversa, referindo anedotas e reproduzindo ditos e sestros doAlcazar. Mendonça via todas essas feições do rapaz, e aturava-o com resignaçãoevangélica. A entrada de Jorge, animando a conversa, acelerou as horas; às dez retirou-se o médico, acompanhado pelo filho de D. Antônia, que ia cear. Mendonça recusouo convite que Jorge lhe fez, e despediu-se dele na Rua do Conde, esquina da doLavradio. Nessa mesma noite resolveu Mendonça dar um golpe decisivo; resolveuescrever uma carta a Margarida. Era temerário para quem conhecesse o caráter daviúva; mas, com os precedentes já mencionados, era loucura. Entretanto não hesitouo médico em empregar a carta, confiando que no papel diria as cousas de muitomelhor maneira que de boca. A carta foi escrita com febril impaciência; no diaseguinte, logo depois de almoçar, Mendonça meteu a carta dentro de um volume deGeorge Sand, mandou-o pelo moleque a Margarida. A viúva rompeu a capa de papel que embrulhava o volume, e pôs o livrosobre a mesa da sala; meia hora depois voltou e pegou no livro para ler. Apenas oabriu, caiu-lhe a carta aos pés. Abriu-a e leu o seguinte: "Qualquer que seja a causa da sua esquivança, respeito-a, não me insurjocontra ela. Mas, se não me é dado insurgir-me, não me será lícito queixar-me? Háde ter compreendido o meu amor, do mesmo modo que tenho compreendido a suaindiferença; mas, por maior que seja essa indiferença está longe de ombrear com oamor profundo e imperioso que se apossou de meu coração quando eu mais longe 11
  11. me cuidava destas paixões dos primeiros anos. Não lhe contarei as insônias e aslágrimas, as esperanças e os desencantos, páginas tristes deste livro que o destinopõe nas mãos do homem para que duas almas o leiam. É-lhe indiferente isso. Não ouso interrogá-la sobre a esquivança que tem mostrado em relação amim; mas por que motivo se estende essa esquivança a tantos mais? Na idade daspaixões férvidas, ornada pelo céu com uma beleza rara, por que motivo queresconder-se ao mundo e defraudar a natureza e o coração de seus incontestáveisdireitos? Perdoe-me a audácia da pergunta; acho-me diante de um enigma que omeu coração desejaria decifrar. Penso às vezes que alguma grande dor aatormenta, e quisera ser o médico do seu coração; ambicionava, confesso,restaurar-lhe alguma ilusão perdida. Parece que não há ofensa nesta ambição. Se, porém, essa esquivança denota simplesmente um sentimento de orgulholegítimo, perdoe-me se ousei escrever-lhe quando seus olhos expressamente moproibiram. Rasgue a carta que não pode valer-lhe uma recordação, nem representaruma arma." A carta era toda de reflexão; a frase fria e medida não exprimia o fogo dosentimento. Não terá, porém, escapado ao leitor a sinceridade e a simplicidade comque Mendonça pedia uma explicação que Margarida provavelmente não podia dar. Quando Mendonça disse a Andrade haver escrito a Margarida, o amigo domédico entrou a rir despregadamente. — Fiz mal? perguntou Mendonça. — Estragaste tudo. Os outros pretendentes começaram também por carta; foijustamente a certidão de óbito do amor. — Paciência, se acontecer o mesmo, disse Mendonça levantando os ombroscom aparente indiferença; mas eu desejava que não estivesses sempre a falar nospretendentes; eu não sou pretendente no sentido desses. — Não querias casar com ela? — Sem dúvida, se fosse possível, respondeu Mendonça. — Pois era justamente o que os outros queriam; casar-te-ias e entrarias namansa posse dos bens que lhe couberam em partilha e que sobem a muito mais decem contos. Meu rico, se falo em pretendentes não é por te ofender, porque um dosquatro pretendentes despedidos fui eu. — Tu? — É verdade; mas descansa, não fui o primeiro, nem ao menos o último. — Escreveste? — Como os outros; como eles, não obtive resposta; isto é, obtive uma:devolveu-me a carta. Portanto, já que lhe escreveste, espera o resto; verás se o quete digo é ou não exato. Estás perdido, Mendonça; fizeste muito mal. Andrade tinha esta feição característica de não omitir nenhuma das coressombrias de uma situação, com o pretexto de que aos amigos se deve a verdade.Desenhado o quadro, despediu-se de Mendonça, e foi adiante. Mendonça foi para casa, onde passou a noite em claro.CAPÍTULO VII Enganara-se Andrade; a viúva respondeu à carta do médico. A carta delalimitou-se a isto: 12
  12.  "Perdôo-lhe tudo; não lhe perdoarei se me escrever outra vez. A minhaesquivança não tem nenhuma causa; é questão de temperamento". O sentido da carta era ainda mais lacônico do que a expressão. Mendonçaleu-a muitas vezes, a ver se a completava; mas foi trabalho perdido. Uma cousaconcluiu ele logo; era que havia cousa oculta que arredava Margarida do casamento;depois concluiu outra, era que Margarida ainda lhe perdoaria segunda carta se lhaescrevesse. A primeira vez que Mendonça foi a Mata-cavalos achou-se embaraçado sobrea maneira por que falaria a Margarida; a viúva tirou-o do embaraço, tratando-o comose nada houvesse entre ambos. Mendonça não teve ocasião de aludir às cartas porcausa da presença de D. Antônia, mas estimou isso mesmo, porque não sabia o quelhe diria caso viessem a ficar sós os dous. Dias depois, Mendonça escreveu segunda carta à viúva e mandou-lha pelomesmo canal da outra. A carta foi-lhe devolvida sem resposta. Mendonçaarrependeu-se de ter abusado da ordem da moça, e resolveu, de uma vez por todas,não voltar à casa de Mata-cavalos. Nem tinha ânimo de lá aparecer, nem julgavaconveniente estar junto de uma pessoa a quem amava sem esperança. Ao cabo de um mês não tinha perdido uma partícula sequer do sentimentoque nutria pela viúva. Amava-a com o mesmíssimo ardor. A ausência, como elepensara, aumentou-lhe o amor, como o vento ateia um incêndio. Debalde lia oubuscava distrair-se na vida agitada do Rio de Janeiro; entrou a escrever um estudosobre a teoria do ouvido, mas a pena escapava-se-lhe para o coração, e saiu oescrito com uma mistura de nervos e sentimentos. Estava então na sua maiornomeada o romance de Renan sobre a vida de Jesus; Mendonça encheu o gabinetecom todos os folhetos publicados de parte a parte, e entrou a estudarprofundamente o misterioso drama da Judéia. Fez quanto pôde para absorver oespírito e esquecer a esquiva Margarida; era-lhe impossível. Um dia de manhã apareceu-lhe em casa o filho de D. Antônia; traziam-nodous motivos: perguntar-lhe por que não ia a Mata-cavalos, e mostrar-lhe umascalças novas. Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência,dizendo que andava atarefado. Jorge não era alma que compreendesse a verdadeescondida por baixo de uma palavra indiferente; vendo Mendonça mergulhado nomeio de uma chusma de livros e folhetos, perguntou-lhe se estava estudando paraser deputado. Jorge cuidava que se estudava para ser deputado! — Não, respondeu Mendonça. — É verdade que a prima também lá anda com livros, e não creio quepretende ir à câmara. — Ah! sua prima? — Não imagina; não faz outra cousa. Fecha-se no quarto, e passa os diasinteiros a ler. Informado por Jorge, Mendonça supôs que Margarida era nada menos queuma mulher de letras, alguma modesta poetisa, que esquecia o amor dos homensnos braços das musas. A suposição era gratuita e filha mesmo de um espírito cegopelo amor como o de Mendonça. Há várias razões para ler muito sem ter comérciocom as musas. — Note que a prima nunca leu tanto; agora é que lhe deu para isso, disseJorge tirando da charuteira um magnífico havana do valor de três tostões, e 13
  13. oferecendo outro a Mendonça. Fume isto, continuou ele, fume e diga-me se háninguém como o Bernardo para ter charutos bons. Gastos os charutos, Jorge despediu-se do médico, levando a promessa deque este iria à casa de D. Antônia o mais cedo que pudesse. No fim de quinze dias Mendonça voltou a Mata-cavalos. Encontrou na sala Andrade e D. Antônia, que o receberam com aleluias.Mendonça parecia com efeito ressurgir de um túmulo; tinha emagrecido eempalidecido. A melancolia dava-lhe ao rosto maior expressão de abatimento.Alegou trabalhos extraordinários, e entrou a conversar alegremente como dantes.Mas essa alegria, como se compreende, era toda forçada. No fim de um quarto dehora a tristeza apossou-se-lhe outra vez do rosto. Durante esse tempo, Margaridanão apareceu na sala; Mendonça, que até então não perguntara por ela, não sei porque razão, vendo que ela não aparecia, perguntou se estava doente. D. Antôniarespondeu-lhe que Margarida estava um pouco incomodada. O incômodo de Margarida durou uns três dias; era uma simples dor decabeça, que o primo atribuiu à aturada leitura. No fim de alguns dias mais, D. Antônia foi surpreendida com uma lembrançade Margarida; a viúva queria ir viver na roça algum tempo. — Aborrece-te a cidade? perguntou a boa velha. — Alguma cousa, respondeu Margarida; queria ir viver uns dous meses naroça. D. Antônia não podia recusar nada à sobrinha; concordou em ir para a roça; ecomeçaram os preparativos. Mendonça soube da mudança no Rocio, andando apassear de noite; disse-lho Jorge na ocasião de ir para o Alcazar. Para o rapaz erauma fortuna aquela mudança, porque suprimia-lhe a única obrigação que ainda tinhaneste mundo, que era a de ir jantar com a mãe. Não achou Mendonça nada que admirar na resolução; as resoluções deMargarida começavam a parecer-lhe simplicidade. Quando voltou para casa encontrou um bilhete de D. Antônia concebidonestes termos: "Temos de ir para fora alguns meses; espero que não nos deixe semdespedir-se de nós. A partida é sábado; e eu quero incumbi-lo de uma cousa." Mendonça tomou chá, e dispôs-se a dormir. Não pôde. Quis ler; estavaincapaz disso. Era cedo; saiu. Insensivelmente dirigiu os passos para Mata-cavalos.A casa de D. Antônia estava fechada e silenciosa; evidentemente estavam jádormindo. Mendonça passou adiante, e parou junto da grade do jardim adjacente àcasa. De fora podia ver a janela do quarto de Margarida, pouco elevada, e dandopara o jardim. Havia luz dentro; naturalmente Margarida estava acordada. Mendonçadeu mais alguns passos; a porta do jardim estava aberta. Mendonça sentiu pulsar-lhe o coração com força desconhecida. Surgiu-lhe no espírito uma suspeita. Não hácoração confiante que não tenha desfalecimentos destes; além de que, seria erradaa suspeita? Mendonça, entretanto, não tinha nenhum direito à viúva; fora repelidocategoricamente. Se havia algum dever da parte dele era a retirada e o silêncio. Mendonça quis conservar-se no limite que lhe estava marcado; a porta abertado jardim podia ser esquecimento da parte dos fâmulos. O médico refletiu bem queaquilo tudo era fortuito, e fazendo um esforço afastou-se do lugar. Adiante parou e 14
  14. refletiu; havia um demônio que o impelia por aquela porta dentro. Mendonça voltou,e entrou com precaução. Apenas dera alguns passos surgiu-lhe em frente Miss Dollar latindo; pareceque a galga saíra de casa sem ser pressentida; Mendonça amimou-a e a cadelinhaparece que reconheceu o médico, porque trocou os latidos em festas. Na parede doquarto de Margarida desenhou-se uma sombra de mulher; era a viúva que chegavaà janela para ver a causa do ruído. Mendonça coseu-se como pôde com unsarbustos que ficavam junto da grade; não vendo ninguém, Margarida voltou paradentro. Passados alguns minutos, Mendonça saiu do lugar em que se achava edirigiu-se para o lado da janela da viúva. Acompanhava-o Miss Dollar. Do jardim nãopodia olhar, ainda que fosse mais alto, para o aposento da moça. A cadelinhaapenas chegou àquele ponto, subiu ligeira uma escada de pedra que comunicava ojardim com a casa; a porta do quarto de Margarida ficava justamente no corredorque se seguia à escada; a porta estava aberta. O rapaz imitou a cadelinha; subiu osseis degraus de pedra vagarosamente; quando pôs o pé no último ouviu Miss Dollar pulando no quarto e vindo latir à porta, como que avisando a Margarida de que seaproximava um estranho. Mendonça deu mais um passo. Mas nesse momento atravessou o jardim umescravo que acudia ao latido da cadelinha; o escravo examinou o jardim, e nãovendo ninguém retirou-se. Margarida foi à janela e perguntou o que era; o escravoexplicou-lho e tranqüilizou-a dizendo que não havia ninguém. Justamente quando ela saía da janela aparecia à porta a figura de Mendonça.Margarida estremeceu por um abalo nervoso; ficou mais pálida do que era; depois,concentrando nos olhos toda a soma de indignação que pode conter um coração,perguntou-lhe com voz trêmula: — Que quer aqui? Foi nesse momento, e só então, que Mendonça reconheceu toda a baixezade seu procedimento, ou para falar mais acertadamente, toda a alucinação do seuespírito. Pareceu-lhe ver em Margarida a figura da sua consciência, a exprobrar-lhetamanha indignidade. O pobre rapaz não procurou desculpar-se; sua resposta foisingela e verdadeira. — Sei que cometi um ato infame, disse ele; não tinha razão para isso; estavalouco; agora conheço a extensão do mal. Não lhe peço que me desculpe, D.Margarida; não mereço perdão; mereço desprezo; adeus! — Compreendo, senhor, disse Margarida; quer obrigar-me pela força dodescrédito quando me não pode obrigar pelo coração. Não é de cavalheiro. — Oh! isso... juro-lhe que não foi tal o meu pensamento... Margarida caiu numa cadeira parecendo chorar. Mendonça deu um passopara entrar, visto que até então não saíra da porta; Margarida levantou os olhoscobertos de lágrimas, e com um gesto imperioso mostrou-lhe que saísse. Mendonça obedeceu; nem um nem outro dormiram nessa noite. Amboscurvavam-se ao peso da vergonha: mas, por honra de Mendonça, a dele era maiorque a dela; e a dor de uma não ombreava com o remorso de outro. 15
  15. CAPÍTULO VIII No dia seguinte estava Mendonça em casa fumando charutos sobre charutos,recurso das grandes ocasiões, quando parou à porta dele um carro, apeando-sepouco depois a mãe de Jorge. A visita pareceu de mau agouro ao médico. Masapenas a velha entrou, dissipou-lhe o receio. — Creio, disse D. Antônia, que a minha idade permite visitar um homemsolteiro. Mendonça procurou sorrir ouvindo este gracejo; mas não pôde. Convidou aboa senhora a sentar-se, e sentou-se ele também esperando que ela lhe explicassea causa da visita. — Escrevi-lhe ontem, disse ela, para que fosse ver-me hoje; preferi vir cá,receando que por qualquer motivo não fosse a Mata-cavalos. — Queria então incumbir-me? — De cousa nenhuma, respondeu a velha sorrindo; incumbir disse-lhe eu,como diria qualquer outra cousa indiferente; quero informá-lo. — Ah! de quê? — Sabe quem ficou hoje de cama? — D. Margarida? — É verdade; amanheceu um pouco doente; diz que passou a noite mal. Eucreio que sei a razão, acrescentou D. Antônia rindo maliciosamente para Mendonça. — Qual será então a razão? perguntou o médico. — Pois não percebe? — Não. — Margarida ama-o. Mendonça levantou-se da cadeira como por uma mola. A declaração da tia daviúva era tão inesperada que o rapaz cuidou estar sonhando. — Ama-o, repetiu D. Antônia. — Não creio, respondeu Mendonça depois de algum silêncio; há de serengano seu. — Engano! disse a velha. D. Antônia contou a Mendonça que, curiosa por saber a causa das vigílias deMargarida, descobrira no quarto dela um diário de impressões, escrito por ela, àimitação de não sei quantas heroínas de romances; aí lera a verdade que lheacabava de dizer. — Mas se me ama, observou Mendonça sentindo entrar-lhe n’alma ummundo de esperanças, se me ama, por que recusa o meu coração? — O diário explica isso mesmo; eu lhe digo. Margarida foi infeliz nocasamento; o marido teve unicamente em vista gozar da riqueza dela; Margaridaadquiriu a certeza de que nunca será amada por si, mas pelos cabedais que possui;atribui o seu amor à cobiça. Está convencido? Mendonça começou a protestar. 16
  16.  — É inútil, disse D. Antônia, eu creio na sinceridade do seu afeto; já de hámuito percebi isso mesmo; mas como convencer um coração desconfiado? — Não sei. — Nem eu, disse a velha, mas para isso é que eu vim cá; peço-lhe que vejase pode fazer com que a minha Margarida torne a ser feliz, se lhe influi a crença noamor que lhe tem. — Acho que é impossível... Mendonça lembrou-se de contar a D. Antônia a cena da véspera; masarrependeu-se a tempo. D. Antônia saiu pouco depois. A situação de Mendonça, ao passo que se tornara mais clara, estava maisdifícil que dantes. Era possível tentar alguma cousa antes da cena do quarto; masdepois, achava Mendonça impossível conseguir nada. A doença de Margarida durou dous dias, no fim dos quais levantou-se a viúvaum pouco abatida, e a primeira cousa que fez foi escrever a Mendonça pedindo-lheque fosse lá à casa. Mendonça admirou-se bastante do convite, e obedeceu de pronto. — Depois do que se deu há três dias, disse-lhe Margarida, compreende osenhor que eu não posso ficar debaixo da ação da maledicência... Diz que me ama;pois bem, o nosso casamento é inevitável. Inevitável! amargou esta palavra ao médico, que aliás não podia recusar umareparação. Lembrava-se ao mesmo tempo que era amado; e conquanto a idéia lhesorrisse ao espírito, outra vinha dissipar esse instantâneo prazer, e era a suspeitaque Margarida nutria a seu respeito. — Estou às suas ordens, respondeu ele. Admirou-se D. Antônia da presteza do casamento quando Margarida lhoanunciou nesse mesmo dia. Supôs que fosse milagre do rapaz. Pelo tempo adiantereparou que os noivos tinham cara mais de enterro que de casamento. Interrogou asobrinha a esse respeito; obteve uma resposta evasiva. Foi modesta e reservada a cerimônia do casamento. Andrade serviu depadrinho, D. Antônia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo,para celebrar o ato. D. Antônia quis que os noivos ficassem residindo em casa com ela. QuandoMendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe: — Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidadedas cousas um coração que me não pertence. Ter-me-á por seu amigo; até amanhã. Saiu Mendonça depois deste speech, deixando Margarida suspensa entre oconceito que fazia dele e a impressão das suas palavras agora. Não havia posição mais singular do que a destes noivos separados por umaquimera. O mais belo dia da vida tornava-se para eles um dia de desgraça e desolidão; a formalidade do casamento foi simplesmente o prelúdio do mais completo divórcio. Menos cepticismo da parte de Margarida, mais cavalheirismo da parte do 17
  17. rapaz, teriam poupado o desenlace sombrio da comédia do coração. Vale maisimaginar que descrever as torturas daquela primeira noite de noivado. Mas aquilo que o espírito do homem não vence, há de vencê-lo o tempo, aquem cabe final razão. O tempo convenceu Margarida de que a sua suspeita era gratuita; e, coincidindo com ele o coração, veio a tornar-se efetivo o casamentoapenas celebrado. Andrade ignorou estas cousas; cada vez que encontrava Mendonçachamava-lhe Colombo do amor; tinha Andrade a mania de todo o sujeito a quem asidéias ocorrem trimestralmente; apenas pilhada alguma de jeito repetia-a até asaciedade. Os dous esposos são ainda noivos e prometem sê-lo até a morte. Andrademeteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa representaçãointernacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D. Antônia prepara-se paradespedir-se do mundo. Quanto a Miss Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindoum dia à rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôdereter algumas lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, àsombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição:A Miss Dollar FIM